Flamengo e Vasco é um caso à parte. A frase, repetida incansavelmente pelo ex-Presidente do Vasco, Eurico Miranda, resume bem a mística por trás de um dos maiores embates do Brasil: o Clássico dos Milhões. Mas como dois clubes seculares, originados de um esporte muito diferente do futebol, alcançaram tamanha rivalidade? A resposta vai muito além das quatro linhas.
A rivalidade começou no remo, alguns anos após a criação dos clubes (o Flamengo em 1895 e o Vasco em 1898). Apesar de mais jovem, o Vasco rapidamente virou sinônimo de conquista nas águas, enquanto o Rubro-Negro demorou mais de duas décadas para ganhar seu primeiro título na modalidade, em 1916.
Com a chegada do futebol em ambos os clubes, a rivalidade transcendeu os remos e passou a existir dentro de campo, muito por causa do contexto histórico da época. Em entrevista ao ge, o historiador Walmer Peres explica o processo de construção do clássico dos milhões.
— A gente pode falar que um dos maiores rivais do Vasco no remo, na década de 1910, era o Boqueirão. Mas por estar naquele estado de competitividade, por se relacionar dentro do campo esportivo, havia uma rivalidade entre o Vasco e o Flamengo. No futebol, ela vai atingir um novo patamar, uma nova etapa — conta o historiador.
Para além da esfera esportiva, Flamengo e Vasco, à época, representavam também um confronto de ideais. O contexto histórico era marcado pela Primeira República e pelo forte anti-lusitanismo — ideia contrária a presença de portugueses no Brasil e que dialogava com a valorização da cultura popular (representada pelo Flamengo). Em meio a isso, o Vasco, fundado por portugueses e com presença majoritária de negros, operários e pobres no elenco, passou a receber diversas sanções.
A maior delas viria após a conquista do primeiro campeonato carioca do clube, em 1923. Naquela edição, a primeira do Vasco na elite do futebol carioca, o clube derrotou o Flamengo no primeiro grande embate dos dois times no futebol e conquistou o título inédito. Após o torneio, Flamengo, Botafogo, Fluminense, América e Bangu se juntaram para a fundação da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA).
A AMEA apresentou uma série de normas para exclusão de atletas. Entre elas, eles não poderiam ser analfabetos nem poderiam ter profissões "subalternas" ou profissões que aceitassem gorjetas. Para ter a inscrição aceita, o Vasco deveria, portanto, excluir 12 jogadores — sete titulares e cinco reservas, em sua maioria negros e pobres. O clube não aceitou e elaborou, em seguida, um dos documentos mais importantes de sua história: a Resposta Histórica, se desligando da AMEA.
"São esses doze jogadores, jovens, quasi todos brasileiros, no começo de sua carreira, e o acto publico que os pode macular, nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que elles com tanta galhardia cobriram de glórias", diz um trecho do documento, em português da época.
Com o passar dos anos e a popularização ainda maior do esporte, Vasco e Flamengo possuíam as duas maiores torcidas do estado do Rio (o que permanece até os dias de hoje e explica o apelido do clássico). Isso fez crescer ainda mais a rivalidade que surgiu nos tempos de remo. Nas décadas de 1970 e 1980, os grandes embates entre os dois maiores ídolos dos dois clubes, Zico e Roberto Dinamite, levavam mais de 100 mil pessoas aos estádios, em especial ao Maracanã.
Até hoje, Vasco e Flamengo é o confronto que mais vezes levou mais de 100 mil pessoas ao estádio. Dos 175 jogos com mais de 100 mil pagantes no Maracanã, 36 foram entre os dois clubes. (veja a lista completa abaixo)
* Rodada dupla ou tripla
A "Era Eurico" e a sua importância no clássico
Outro grande fator que inflamou ainda mais essa rivalidade foi Eurico Miranda, ex-dirigente e ex-Presidente do Vasco. No auge dos anos 1990 e 2000, os dois clubes protagonizaram batalhas recheadas de polêmicas e gols, sempre com provocações de ambos os lados e frases que marcam o imaginário do torcedor, como "O Vasco não entra em competição nenhuma para disputar. O Vasco entra na competição para ganhar. E é para ganhar, vou dizendo logo, em especial, do Flamengo".
— A figura do Eurico é a de um impulsionador dessa rivalidade, nas décadas de 1980, 1990, 2000, e isso aquecia a rivalidade. Ele mostrava que o maior rival do Vasco não é o Fluminense, não é o Botafogo, é o Flamengo. E vice-versa. É a maior rivalidade do estado do Rio de Janeiro e do Brasil — completa Walmer.
A partir disso, a atmosfera do "Clássico dos Milhões" foi transformada e aqueceu ainda mais uma rivalidade de mais de um século entre os dois clubes. Alheio a momentos e folhas salariais, Flamengo x Vasco se mostrou, de fato, um campeonato a parte ao longo de toda a história. Nas arquibancadas, a troca de "gentilezas" é cantada a plenos pulmões pelos dois lados, buscando enaltecer a história de cada clube e provocar o rival.
Com ambições distintas na tabela e na temporada, Flamengo e Vasco se enfrentam buscando não só os três pontos, mas a conquista simbólica de um dos troféus mais importantes historicamente para os dois clubes: o do Clássico dos Milhões.