O Cauan Barros, que hoje é titular no meio de campo do Vasco e peça essencial no esquema de Fernando Diniz, quase desistiu da carreira três anos atrás. Aos 18 anos, ele se preparava para disputar sua primeira Copinha pelo clube quando machucou a lombar no treino, ouviu que talvez fosse necessária uma cirurgia e perdeu a cabeça.
O Vasco fazia os ajustes finais na equipe que viajaria naquela semana para São Paulo. Como havia tido problemas recentes com lesão, Barros viu o filme se repetir e foi atingido em cheio pela frustração dele e da família, que tinha planos de ir junto para ver os jogos. Ele pegou suas coisas e voltou para Pernambuco.
- Eu só me lembro dele falando: "Vou embora, vou embora". E veio. A gente ficou no Rio - conta Clécio, pai de Barros.
Os pais e as duas irmãs mais novas que moravam com ele no Rio foram pegos de surpresa. Barros ficou cerca de um mês esfriando a cabeça na casa da família, na Terra Indígena Pankararu, tribo à beira do Rio São Francisco situada entre Tacaratu e Petrolândia. Ele queria jogar contrato, plano de carreira, tudo para o alto, mas com o tempo foi convencido de que o melhor a fazer seria voltar para tratar a lesão no Vasco. Depois disso, se ainda quisesse desistir, tudo bem.
O pai contou ao ge que Barros sempre foi um menino "muito afoito".
- A gente dizia: "Calma, Cauan! Calma!". Em todos esses momentos, quando acontecia alguma coisa, ele queria desistir. Quando machucou a coluna, ele queria vir para casa. Quando perdeu pênalti, queria vir para casa. Quando quebrou o pé, queria vir para casa. Quando rompeu o menisco, queria vir para casa - recordou Clécio, que no ano passado voltou a morar na tribo dos Pankararus.
No final das contas, Barros não precisou de cirurgia. Ele viu o elenco sub-20 desinchar com as subidas de Andrey Santos, Marlon Gomes e Eguinaldo para o profissional, aproveitou as oportunidades e fez uma temporada consolidada na categoria. Em 2023, aí sim, jogou a Copinha, fez gol e teve boas atuações, embora tenha perdido um dos pênaltis na eliminação para o Ibrachina, na segunda fase.
A primeira chance no time principal veio naquele ano, com Maurício Barbieri. Barros chegou a marcar gol numa derrota para o São Paulo, no Morumbis, mas a troca de troca de treinador fez com que ele perde espaço no time e terminasse a temporada no banco. Durante o ano passado inteiro e o primeiro semestre deste ano, o jovem jogador, defendeu Amazonas e América-MG por empréstimo, período no qual amadureceu "na marra", como diz seu empresário.
Em agosto, o pai da pequena Sophia voltou para ser titular no time de Fernando Diniz, que disse que ele "tem um futuro brilhante pela frente" depois da grande atuação contra o Botafogo, no jogo de ida das quartas de final da Copa do Brasil. As três derrotas recentes no Brasileirão, para Juventude, Botafogo e São Paulo, interromperam uma sequência de 11 partidas de invencibilidade do Vasco com Barros na equipe titular.
Barros teve uma infância humilde na tribo dos Pankararus, mais de seis horas para dentro do sertão pernambucano. Para além de viver em um local distante das grandes cidades, onde a internet só para valer cerca de seis anos atrás, sua família se acostumou a viver com pouco numa casinha com sala e dois quartos. Clécio era gari e complementava a renda trabalhando na roça. Luciana era merendeira. "A gente se esforçava para comprar os tênis do Senninha, que naquele tempo era a moda", contou a mãe ao ge.
Eles passaram anos e anos escutando as queixas de que Barros era um menino levado e que, dessa maneira, não chegaria a lugar algum. O episódio que virou lenda na tribo, e que até hoje rende boas risadas, foi o dia que ele levou para a escola uma caixa com um sapo dentro e tentou fazer com que a professora beijasse.
"Ele era danado, sempre danado", suspirou a mãe.
- Uma vez ele fugiu da escola, foi cortar caminho pela roça, e os bois deram carreira atrás dele. Ele foi correr e se rasgou todo nos arames. Chegou aqui e mentiu, disse que tinha tomado murro na escola. Eu fiquei brava e quase fui na escola - completou Luciana, contando que o filho disse a verdade quando se deu conta de que a farsa seria descoberta.
Por outro lado, Barros era um menino forte, ligeiro e que não se intimidava com tamanho, os pais relatam. Os Pankararus têm um rito de iniciação para adolescentes que se chama Menino do Rancho, que se dá em datas comemorativas ou em agradecimento pela cura de uma doença. Em determinado momento, o garoto é solto no terreiro enquanto os Encantados, figuras centrais da espiritualidade da aldeia, tentam capturá-lo. Cabe aos padrinhos, normalmente identificados com pinturas de barro branco, protegê-lo.
- O Cauan sempre participava porque tinha muita força. Ele era até perigoso, sempre queria enfrentar os maiores que ele (risos) - a mãe recordou.
Ver Barros trilhando caminho de sucesso como jogador provoca orgulho na tribo, que virou um reduto vascaíno no sertão de Pernambuco, como mostrou reportagem do Esporte Espetacular em 2021 (veja no vídeo abaixo). Quando ele assinou seu primeiro contrato profissional com o Vasco, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) publicou nas redes sociais comemorando: "Motivo de orgulho e alegria para a comunidade".
Foi por meio dessa publicação da Funai que as pessoas no Vasco descobriram a origem indígena de Barros.
Quando chegou ao clube com 15 anos, depois de uma passagem na base do Primavera, de São Paulo, o volante não compartilhava suas raízes nem dizia que vinha de uma tribo por receio de virar chacota entre os companheiros de time, todos adolescentes como ele. Luciana se lembra que o filho disfarçava até o sotaque.
- Me chamaram lá no clube para falar sobre isso. Como os meninos eram todos de cidade, de família estruturada, ele ficava se resguardando. De tribo indígena, de família pobre, humilde, ele tinha receio. Você está sendo zoado, você vai procurar qualquer coisa sobre o cara para parar de ser zoado. Então ele tinha esse receio - contou ela.
"Os caras tudo do Rio, aí chegou um pernambucano, um índio", completou.
Entre conversas com a psicóloga e a assessoria do clube, Barros passou a abraçar suas origens. Ele não esconde mais quem é.
Barros não foi jogador do Athletico-PR por causa de R$ 500 e um emprego para o pai.
O volante do Vasco se destacava no futebol desde novo, nos primeiros chutes na bola no sertão. Certa vez, foi aprovado num teste realizado na cidade de Petrolândia e recebeu o convite para jogar na base do Athletico. Com a ajuda do empresário, ele e seu pai arrumaram as malas com destino a Curitiba, mas, no meio do caminho, decidiram passar por Indaiatuba, no interior de São Paulo. Um amigo da família havia arrumado um teste para ele no Primavera.
- Quando chegou lá, botaram ele para treinar no sub-15 só para destravar as pernas. Ele tinha 13. O Cauan fez dois gols, deu duas assistências. O cara gostou dele. Disse: "Esse moleque tem futuro". Só que o empresário disse que ele já estava certo no Athletico - narrou Clécio.
A proposta do Athletico era de um contrato de dois anos que incluía todos os custos com hospedagem e alimentação e ainda oferecia um salário mínimo para Barros. O diretor do Primavera cobriu a oferta: prometeu pagar R$ 500 a mais do que o clube paranaense e ainda arrumou um emprego de porteiro para o pai, que teria que ficar por conta própria em Curitiba. Clécio a princípio não se empolgou ("Athletico é um clube grande, né"), mas por fim eles aceitaram.
Barros jogou por mais de dois anos na base do Primavera. Em 2019, um olheiro responsável pela captação do Vasco foi até Indaiatuba observar uma lista de jogadores que não incluía Barros. Mas ele contou com o acaso.
- O meia que eles tinham ido ver se machucou no treino avaliativo. O Cauan estava voltando de lesão, entrou só para completar o time. Deu duas viradas, fez dois gols, o cara do Vasco endoidou com ele. Depois, no sub-17, meteu mais dois gols. Endoidou mais ainda. Foi lá e levou ele - contou Clécio, que se lembra até hoje das palavras que poderiam mudar a vida da família:
"Pode dizer que ele agora é jogador do Vasco".
Barros ainda era aquele menino travesso quando chegou no Vasco. A princípio, ele foi sozinho. Como os menores de idade que vivem no alojamento só podem sair para passear com autorização do pais, o clube não sabia mais o que fazer para segurá-lo nas dependências do complexo de São Januário. Luciana e Clécio receberam uma ligação com o conselho: era melhor eles se mudarem para o Rio de Janeiro.
Foi então que eles deixaram a tribo dos Pankararus no final de 2021 para ficar perto do filho no caos do Rio de Janeiro. Os empresários que gerenciam a carreira de Barros ficaram responsáveis pelos custos do apartamento no bairro de São Cristóvão, perto do estádio. Luciana chegou apavorada:
- Eu passei por bastante dificuldade. Sofri com ansiedade, não queria sair do apartamento. No outro ano é que foi melhorando, comecei a ter convivência com outras pessoas. Muitas pessoas ajudaram por a gente ser índio, ser de aldeia. Fomos fazendo amizade - contou.
Ela se lembra como se fosse ontem do dia em que Barros completou 18 anos, disse que ia dar uma volta na Barreira e voltou com um brinco em cada orelha. Passou uma semana com raiva do filho, mas depois entendeu que ele ao menos havia obedecido a condição de ser maior de idade para isso: "Ele sempre respeitou o tempo dele".
Luciana, Clécio e as irmãs voltaram para Pernambuco apenas no início do ano passado, quando Barros foi emprestado ao Amazonas. Graças ao volante do Vasco, o lar da família na tribo não é mais uma casinha: agora tem quatro quartos, duas salas espaçosas, área de serviço e até garagem.
A família e todo mundo próximo a Barros concordam que o período em que ficou longe do Vasco serviu para que ele amadurecesse. Quando foi para Manaus, sua filha com a esposa Thays havia acabado de nascer.
- O Amazonas abriu as portas, temos que ser gratos. Mas não podemos falar que foi fácil - contou ao ge o empresário Fernando Araújo, que cuida da carreira de Barros.
- Ele foi para lá com a filhinha recém-nascida praticamente, um lugar mais longe. Tem as dificuldades, estava acostumado com o Vasco, vai para uma estrutura diferente. Foi um processo difícil, mas eu considero importante demais no crescimento dele como pessoa. No futebol os jogadores acabam tendo que amadurecer na marra, têm que se virar, não têm muita opção - completou.
Fernando concluiu dizendo que o objetivo de Barros sempre foi voltar ao Vasco, "ajudar a equipe dentro de campo e fazer a torcida gostar dele". O contrato com o clube vai até dezembro de 2017.
No Amazonas, Barros encontrou um velho conhecido da torcida vascaína: o volante Felipe Bastos, que atuou em apenas cinco partidas pela equipe no ano passado. Nesse período em que trabalharam juntos, entre uma carona e outra, Bastos deu um conselho que, ele acredita, mudou para melhor a postura do atual jogador do Vasco.
- Eu falei que tinha observado ele duas, três semanas no clube. Observei que ele era um cara agressivo, mas que se acuava quando alguém repreendia dele. Eu tive essa oportunidade e comentei que ele tinha que continuar sendo agressivo, mesmo que as pessoas falem que não. Isso faz parte da evolução, você está brigando por você e por sua família. Se as pessoas estão reclamando que você está batendo, bate mais. Se as pessoas estão reclamando que você está agressivo, seja mais agressivo - relatou ele ao ge.
- Respeita sempre fora de campo os mais velhos e as pessoas, mas dentro de campo você tem que lutar pelo seu espaço. A sua agressividade vai te levar a lugares que você nem imagina. Mas se você se acanhar e ficar com vergonha, essa sua agressividade não vai servir de nada. É isso que a gente está vendo no Vasco - concluiu.
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